quarta-feira, 13 de junho de 2007

A LITURGIA COMO CELEBRAÇÃO


Pedro Boléo Tomé
Revista Celebração Litúrgica

Hoje em dia é usual aplicarmos o termo celebração à liturgia. Referimo-nos aos sacramentos e à liturgia como algo a celebrar. No entanto, nem sempre foi assim. Pelo que pode ser pertinente perguntarmo-nos: que queremos dizer quando afirmamos que vamos celebrar um sacramento? Que significado possui esse termo e quais as suas dimensões? Em que consiste a acção de celebrar e de onde vem? Qual a sua relação com a liturgia?

Estas são algumas das questões que nos propomos analisar, ainda que muito brevemente, neste artigo.

Celebrar o Mistério de Cristo

A celebração tem uma estreita relação com a liturgia e, portanto, com o culto prestado a Deus. Daí que, para chegarmos a esse conceito, nos pareceu conveniente acompanhar a evolução destes dois conceitos ao longo da história da Igreja.

Nos primeiros tempos do cristianismo, a palavra liturgia era utilizada para designar o culto ritual. Depois, o termo perde-se e só volta a surgir na época do Renascimento. No entanto, esta recuperação não é total, pois perde-se uma parte importante do seu significado. Utiliza-se para designar os livros litúrgicos ou, em geral, tudo o que se refere ao culto da Igreja. Começa-se depois a falar da liturgia como um conjunto ritual determinado, isto é, como modo de indicar os diversos modos nos quais se exprimiu o culto cristão ao longo da história. Este uso degenerou na equivalência entre liturgia e ritualidade cerimonial e de rubricas. Esta equivalência permaneceu estável praticamente até ao concílio Vaticano II, não só no uso comum, mas também na própria organização dos estudos eclesiásticos, em cujo âmbito o estudo da liturgia não ia mais além do conhecimento das rubricas que regulam o exercício exterior do culto[1].

A noção de culto, pelo seu lado, é uma noção rica na qual se podem encontrar diferentes dimensões. No Antigo Testamento entendia-se culto de um modo teológico por contraposição ao culto dos povos pagãos, pois para estes a concepção de culto como fenómeno religioso tem um carácter antropológico. Em ambos os casos trata-se de um diálogo entre o homem e Deus mas, no caso de Israel, é Deus quem toma a iniciativa, é Ele quem chama, e o culto é a resposta do homem a essa chamada. Para os outros povos os actos de culto são manifestações da busca de um deus por parte do homem, não existe um momento prévio com Deus por protagonista.

No culto veterotestamentário podemos identificar três dimensões que antecipam o culto cristão: dimensão comunitária (Israel entende-se como um povo que tem uma aliança com Deus e por isso deve dar-lhe culto); dimensão interior (pois as manifestações exteriores de culto devem ser representativas de uma atitude interior); dimensão histórica (o culto de Israel é a resposta às obras de Deus na história do povo, mas representa uma resposta em direcção ao futuro: o Messias)[2].

Com Cristo, estas três dimensões atingem a sua plenitude. Para dar culto em «espírito e verdade»[3] é necessário estar incorporado à Igreja, o novo Povo de Deus (dimensão comunitária)[4].

Incorporados com Cristo, os cristãos dão culto a Deus em todo momento. O culto deixa de estar limitado aos actos rituais. É plenamente interior, obra do Espírito Santo, verdadeiro culto em «espírito e verdade»[5]. A dimensão interior, presente já no Antigo Testamento, adquire agora a sua plenitude.

A dimensão histórica, pelo seu lado, manifesta-se na celebração do evento de Cristo:[6] a celebração eucarística é a actualização do mistério pascal. É a celebração do acontecimento histórico de Cristo e este acontecimento é cultual. Assim, a celebração é toda ela anamnética. Isto é, contém em si uma dimensão passada (porque o acontecimento que se faz presente é um acontecimento passado), uma dimensão presente (actualização desse acontecimento que se deu de uma vez para sempre) e uma dimensão futura (actualização de forma antecipada dos acontecimentos escatológicos)[7]. Se no culto de Israel estas três dimensões eram anúncio, no Novo Testamento são cumprimento.

Nos primeiros séculos da Igreja, e particularmente para os Padres da Igreja, as acções de culto eram compreendidas como celebração do mistério de Cristo, actualização do acontecimento histórico-salvífico do Verbo de Deus encarnado, manifestado, presente e operante através de ritos. Para os Padres, o culto da Igreja não é primariamente a expressão cultual cristã da natureza religiosa da humanidade, mas a manifestação da vontade amorosa do Deus trinitário que, de forma velada, mediante ritos, vem ao encontro do homem, para incorporá-lo ao mistério salvífico de Cristo e convertê-lo em adorador da sua glória.

O culto é, assim, presença e celebração do Mistério Pascal de Cristo, de modo que, pela celebração, o cristão, entrando em comunhão com Cristo, pode oferecer ao Pai um culto interior.

Nas épocas posteriores, vai-se perdendo progressivamente esta consciência. Exceptuando a Eucaristia, as restantes celebrações de culto vão perdendo o seu carácter de actualização do mistério de Cristo, para ser interpretados como momentos nos quais se transmitem méritos da paixão do Senhor,[8] ou então, sendo vistos como manifestações da virtude da religião. Assim, a noção de culto vai perdendo conteúdo teológico progressivamente para, na época do Renascimento, ser identificado com a cerimónia, isto é, com o aspecto externo das relações do homem com Deus. Esta é a concepção que domina até ao século XX (e grande parte do mesmo). Identifica-se culto com o carácter público, comunitário e jurídico dos gestos religiosos que a Igreja vive.

Com o Movimento Litúrgico, a encíclica Mediator Dei e, mais tarde, com a constituição Sacrosanctum Concilium, inverte-se esta situação. Recupera-se o carácter teológico do culto cristão[9], com as suas três dimensões próprias (comunitária, interior e histórica).

Ao recuperar o carácter teológico do culto cristão, recupera-se e generaliza-se o uso do termo liturgia. E o estatuto teológico da liturgia leva, por sua vez, à recuperação do termo celebração. Efectivamente, nos últimos anos, dá-se uma consciencialização massiva de que a liturgia é celebração. A liturgia não se diz nem se faz, celebra-se. Se a constituição Sacrosanctum Concilium utilizava o termo celebração algumas vezes, o Catecismo da Igreja Católica recorre a ele para intitular a sua segunda parte: «A celebração do Mistério Cristão». Por seu lado, no Compêndio, o ponto que abre esta segunda parte pergunta-se sobre a noção de liturgia: «O que é a liturgia? A liturgia é a celebração do Mistério de Cristo e em particular do Mistério Pascal»[10].

Fenomenologicamente, a celebração é uma acção simbólica fora do habitual, composta de gestos, símbolos materiais e palavras que se relacionam entre si. Com efeito, celebrar ou celebração é algo que está imerso na vida do homem e na história, tanto religiosa como profana, da humanidade. Falamos de celebração ou de festa quando se dão um conjunto de circunstâncias ou de acções que têm uma especial transcendência para a comunidade humana, para o grupo ou para o povo. Celebra-se aquilo que interessa profundamente.

Para alguns antropólogos, a celebração é um meio interpessoal de relação e de encontro, isto é, a celebração deve ser compreendida no contexto da pessoa humana e do encontro com o outro na celebração comunitária. Neste sentido, celebrar será uma acção não corrente realizada no contexto de uma comunidade que nessa acção se reconhece como tal comunidade.

Para os cristãos, celebrar recebe um notável aprofundamento. É que a fenomenologia da celebração cristã é incapaz de explicar o acontecimento que nela se realiza. Por isso, em S. Agostinho, o termo celebrare designa tornar visível uma realidade invisível[11]. Efectivamente, o aspecto teológico da liturgia não reside tanto no aspecto fenomenológico (embora seja importante), mas sim em algo que transcende qualquer categoria cultual: o mistério de Cristo. A celebração é, então, o momento no qual a atitude vital de adesão ao Mistério de Cristo se transforma em acto simbólico, ritual e festivo.

A noção de liturgia como celebração implica, portanto, a interrelação das duas características: celebração e mistério de Cristo. Por isso, quando dizemos que a liturgia é celebração do mistério de Cristo, falamos da sua manifestação, do seu fazer-se presente e da sua comunicação num código simbólico que delimita o seu acontecer fora do âmbito do quotidiano. Assim, a celebração litúrgica é presença (dimensão anamnética), comunicação (dimensão epiclética) e manifestação (dimensão epifânica) do mistério de Cristo[12].

Analisemos brevemente cada uma destas dimensões.

Celebrar é tornar presente o Mistério de Cristo (dimensão anamnética)

Toda a celebração é sagrada recordação do acontecimento da salvação. Ela é sempre anamnética – memorial[13]. É portanto, anamnese permanente:[14] uma acção que é presença do acontecimento histórico-salvífico do mistério de Cristo, sucedido de uma vez para sempre. É a presença, sempre actual, do acontecimento salvífico da Páscoa[15]. Tal presença é, como vimos anteriormente, obra do Espírito Santo: toda a obra anamnética é fruto da acção e potência do Espírito[16].

Do ponto de vista fenomenológico, esta celebração anamnética (memorial) é caracterizada pelo seu carácter de re-presentação (voltar a estar presente), não de repetição.

Mas, este carácter memorial, como já referimos, supõe algo mais que a presença puramente fenomenológica. Isto porque a acção simbólica realizada implica relação entre o significante e o significado. No entanto, neste caso, a realidade a significar transcende totalmente a capacidade simbólica. Por isso, a acção simbólica litúrgica é chamada acção sacramental. Neste sentido, a celebração litúrgica é algo único dentro da categoria dos sinais, já que goza desta categoria de sacramentalidade.

Por conseguinte, para interpretar correctamente a celebração litúrgica não é suficiente o código simbólico, é necessária a fé[17]. Porque os símbolos por si sós são incapazes de expressar o que sucede na acção litúrgica. Contudo, pelo poder do Espírito Santo, dentro da celebração do mistério de Cristo realizada pela Igreja, eles adquirem essa capacidade. Aí, nesse lugar e momento concreto, mediante essas acções e através dessa simbologia dá-se, acontece, realiza-se, o único sacrifício de Cristo na Cruz, acontecido de uma vez para sempre[18].

Celebrar é invocar o Espírito Santo (dimensão epiclética)

Existe um momento de particular importância, na oração eucarística e nas outras fórmulas eucológicas maiores[19], em que se invoca o Espírito Santo. É a chamada Epiclese (invocare, em latim). No entanto, toda a celebração é, de alguma forma, epiclese permanente. Com efeito, em toda a celebração litúrgica vem o Espírito Santo como fruto da oração sacerdotal de Jesus[20] actualizada e manifestada na oração eucarística da Igreja. Toda a liturgia é, assim, celebrada mediante uma invocação, e toda a fórmula sacramental é uma fórmula epiclética: uma invocação dirigida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Desta forma, podemos dizer que toda a celebração é fazer epiclese. Assim, afirma o Catecismo da Igreja católica:

«A Epiclese é também oração pelo pleno efeito da comunhão da assembleia no Mistério de Cristo (...). Por isso, a Igreja pede ao Pai que envie o Espírito Santo, para que faça da vida dos fiéis uma oferenda viva para Deus pela transformação espiritual à imagem de Cristo, pela preocupação com a unidade da Igreja e pela participação na sua missão, mediante o testemunho e o serviço da caridade»[21].

O momento cume desta invocação permanente é a epiclese solene e sacerdotal da prece eucarística ou das restantes preces sacramentais, mas toda a celebração está marcada e impregnada de epiclese, da mesma forma que está marcada e impregnada de anamnese[22].

Celebrar é manifestar a fé adorando a Santíssima Trindade (dimensão epifânica)

A celebração, para além de anamnese e epiclese é também doxologia, isto é, louvor, culto, adoração, reconhecimento e acção de graças[23]. O Espírito Santo, que desperta a memória da Igreja (anamnesis), suscita então a acção de graças e o louvor a Deus[24]. A Igreja manifesta assim, na celebração, a sua fé e dirige ao Senhor o louvor, a adoração e as acções de graças que Lhe são devidas. Embora este elemento doxológico predomine nalgumas celebrações e em especial nalgumas orações, ele está presente em todas as celebrações litúrgicas. Toda a celebração é uma acção pela qual se glorifica o Pai por Jesus Cristo no Espírito Santo.

Podemos, desta forma, identificar na celebração as suas duas dimensões próprias: descendente (Deus que vem ao encontro do homem e derrama as suas graças) e ascendente (resposta do homem como adoração, louvor e acção de graças).



Após estas considerações torna-se claro que a celebração é algo de grandioso que não se reduz, antes, ultrapassa largamente a cerimónia celebrada. Isto é, não se limita a uma acção externa sujeita a uma norma ou costume. A celebração é simultaneamente acção de Deus e acção do homem. Deus que vem e o homem que responde. Ela é, portanto, acto, acção expressiva, ritual da Igreja, mas, simultaneamente, actualização, manifestação e comunicação do mistério da salvação.





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[1] Cfr. S. MARSILI, Liturgia, em “Nuevo Diccionario de Liturgia”, D. SARTORE - A. TRIACCA (ed.), Madrid 1987, p. 1145 s.

[2] Cfr. J. LÓPEZ, En el Espíritu y la verdad, I, Salamanca 1987, pp. 27-30.

[3] Cfr. Jo 4, 23-24.

[4] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1141-1143; M. SODI, Culto, em “Nuevo Diccionario de Liturgia”, D. SARTORE - A. TRIACCA (ed.), Madrid 1987, p. 341.

[5] Jo 4, 23-24.

[6] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1085.

[7] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1090, 1104.

[8] Cfr. J. CORBON, Liturgia alla sorgente, Roma 1983, p. 118.

[9] Como um momento em que a redenção se faz presente e operativa nas celebrações da Igreja (cfr. SC 6), sendo anúncio e realização dessa obra redentora , mas também, antecipação dos acontecimentos futuros (cfr. SC 8).

[10] COMPÊNDIO DO CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 218.

[11] Cfr. M. SODI, Culto, em “Nuevo Diccionario de Liturgia”, D. SARTORE - A. TRIACCA (ed.), Madrid 1987, p. 337.

[12] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1092.

[13] Cfr. Ibíd., 1099. Na fé da Igreja uma celebração memorial não é uma recordação subjectiva, mas um acontecimento ritual que torna presente o acontecimento salvífico acontecido na história de forma perene e continuada.

[14] Cfr. J. LÓPEZ, En el Espíritu y la verdad, I, Salamanca 1987, p.220.

[15] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1103 s.

[16] Cfr. Ibíd., 1104.

[17] Cfr. Ibíd., 1153; SC 59.

[18] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1152.

[19] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 699, 1105-1106, 1109, 1238, 1353.

[20] Cfr. Jo 14, 16.

[21] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1109.

[22] Cfr. J. LÓPEZ, En el Espíritu y la verdad, I, Salamanca 1987, p.220.

[23] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1103, 2641, 2855-2856.

[24] Cfr. Ibíd., 1103.

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