quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LECIONÁRIO E LITURGIA


O que é um Lecionário?



Genericamente, um lecionário é uma lista de textos das escrituras bíblicas (chamadas lectio – leitura) recomendadas para o uso na adoração ou no estudo em um dia em particular. Os lecionários cristãos são usualmente construídos em torno do ano litúrgico, mas algumas vezes são centrados no ano secular ( como no caso dos planos de leitura da Bíblia em um ano). Os lecionários cristãos geralmente incluem a leitura de um texto da bíblia hebraica, um Salmo, uma leitura das epístolas e uma leitura do evangelho.


O que é ano litúrgico, ou ciclo anual da igreja?


O ano litúrgico é uma antiga forma de contar o tempo. Indo mais além do que simplesmente contar o tempo de acordo com as estações naturais, os cristãos têm, tradicionalmente, medido o tempo na sua adoração de acordo com as estações da vida do Cristo. Algumas das estações do ano litúrgico são fundadas em tradições que se ligam aos primeiros registros escritos da adoração cristã. A atual forma de calendário cristã, incluindo cores, datas e festas, foi estabelecida firmemente no ocidente no período medieval.

A adoração centrada no Ano Litúrgico permite aos cristãos se inserirem na vida de Jesus e ao mesmo mater rítmo e sincronia com grande parte dos cristãos por todo o mundo. Estações de esperança e lamento, misericórdia e penitência, asseguram que todos os aspectos da condição humana sejam observados e tenham um lugar apropriado na prática da adoração na igreja.

A repetição destas estações é também uma ferramenta na formação cristã, gentilmente inculcando uma herança de fé nas gerações.As estações específicas se refletem em cores usadas ao redor do lugar de encontro da igreja, nos textos lidos e em outras práticas litúrgicas como o acendimento de velas na páscoa ou nas velas acesas da coroa do advento.


Quando uma festa da igreja cai no meio da semana, não é incomum celebrá-la no Domingo mais próximo, o que não é o caso com dias especiais como o Natal ou o início da quaresma.


Quais são as estações do ano litúrgico?


Advento – A estação da Espera – Começando 4 domingos antes do dia de Natal, a estação do Advento é o tempo quando a igreja olha para a segunda vinda de Jesus Cristo e para a eterna esperança dos cristãos no fim do tempo. A cor para esta estação é o púrpura (para realeza) ou o Azul Claro.


Natal – A estação da Encarnação – Por 12 dias, do dia de Natal (25 de Dezembro) até a epifania (06 de Janeiro), a igreja celebra a encarnação miraculosa de Deus na pessoa de Jesus. A cor desta estação é o branco.


Epifania – O tempo de ser iluminado - A Epifania representa a assunção humana de Jesus Cristo, quando o filho do Criador dá-se a conhecer ao Mundo. Na narração bíblica Jesus deu-se a conhecer a diferentes pessoas e em diferentes momentos, porém o mundo cristão celebra como epifanias três eventos: a Epifania propriamente dita perante os magos do oriente (como está relatado em Mateus 2, 1-12) e que é celebrada no dia 6 de Janeiro; a Epifania a João Batista no rio Jordão; e a Epifania a seus discípulos e início de sua vida pública com o milagre de Caná quando começa o seu ministério. No sentido literário, a "epifania" é um momento privilegiado de revelação, quando acontece um evento ou incidente que "ilumina" a vida da personagem. Na epifania a cor pode ser o amarelo ou o dourado.


Quaresma – A estação da Reflexão – Por quarenta dias (não incluindo os domingos) antes do domingo da Pascoa a igreja reflete nos sofrimentos de Jesus Cristo. Juntos, nos aproximamos da Cruz. A adoração durante este período é tradicionalmente subordinada e penitencial. Muitas pessoas jejuam durante a quaresma. A cor desta estação é o roxo.


Semana Santa – A semana final é chamada de “Semana Santa”. Muitas igrejas se reúnem todos os dias durante a Semana Santa. No mínimo existem reuniões na Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado. A cor na Semana Santa permanece o roxo, embora algumas igrejas usem o vermelho no domingo de Ramos e preto na Sexta-feira Santa.


Páscoa – A estação da Ressurreição – Por cinqüenta dias, começando com o Domingo de Páscoa, os cristãos celebram o milagre da ressurreição de Jesus e a esperança de sua própria ressurreição. A cor da páscoa é o branco ou o amarelo (por ser preciosa a glória do Cristo ressurreto). Esta estação termina no domingo de Pentecostes.


Pentecostes - A festa da inclusão e da igualdade, da presença comum e igual a todos do Espírito Santo no meio de todos e de cada um na Igreja. A cor de Pentecostes é o vermelho.


Tempo Comum – A estação do crescimento e das condições para crescer – Os períodos que seguem à Epifania e ao Pentecostes são referidos como tempo comum. O foco do tempo comum é no desenvolvimento de uma compreensão mais profunda do discipulado cristão. A cor deste tempo é o verde (como crescem as plantas).



Qual é a origem do lecionário?

O sistema de lecionario adotado é o trabalho de dois corpos ecumênicos: a Consulta de Textos Comuns (CCT- Consultation on Common Texts) e posteriormente da Consulta Litúrgica Internacional da Lingua Inglesa (ELLC). O primeiro destes dois corpos remete à metade dos anos 60 e era formado por Acadêmicos Liturgicos católicos e protestantes em resposta às reformas liturgicas recomendadas pelo Concílio Vaticano II e na disseminação do Lecionário Romano de 1969 (Ordo Leclionum Missae).

Respondendo a um interesse disseminado no modelo Romano, muitas igrejas protestantes no Novo Mundo fizeram adaptações nos anos 70.

A CCT produziu uma harmonização, retrabalhada em 1983 e revisada em 1992. Os dois corpos representam 25 denominações cristãs nortemericanas, bem como canadenses, Neozelandesas e no Brasil a IECLB.

O Lecionário Comum Revisado é usado na maioria das igrejas cristãs do Ocidente e foi adotado majoritariamente pelas igrejas do mundo inteiro, ainda que não se harmonize com as leituras das igrejas cristãs de tradição oriental.

O mesmo se dá nos países latino-americanos, o que favorece o ecumenismo amplo com igrejas que se orientam por ele (igreja católica romana, anglicana, igrejas luteranas da Europa, da América do Norte, da América Latina).


Que evidências históricas podem ser citadas quanto ao uso do lecionário?


A prática da liturgia da palavra é atestada pelos textos apostólicos (como At2.42s.) e pós-apostólicos (como Didaqué, Apologia Primeira de Justino, Tradição Apostólica de Hipólito, entre outros).

A liturgia da palavra é herança judaica; já no judaísmo antigo há textos fixos e previstos para os sábados e as suas festas.

É do tempo de Ambrósio, de Milão, o mais antigo lecionário de que se tem notícia (entre os anos 337-377), seguido do lecionário romano (366-604), armênio (417) e de Jerusalém (417-439).


Como é estruturado o lecionário comum revisado?


O LCR oferece um ciclo de três anos com quatro leituras para cada Domingo do calendário litúrgico.

Essas leituras são:Uma Lição das escrituras judaicas (ou de atos durante a estação da páscoa)Um SalmoUma Lição das Epístolas ou de Atos. Uma lição dos evangelhos

Durante o Tempo Comum, existem duas maneiras de se fazer a leitura das escrituras judaicas. Uma que progride semicontinuamente através das narrativas dos Patriarcas e do Êxodo (Ano A), as narrativas monárquicas (Ano B), e os Profetas (Ano C).

A outra maneira é relacionada tematicamente às lições do evangelho para estas datas. Da mesma forma, durante o Tempo Comum, existe duas leituras separadas dos Salmos, uma que corresponde à lição semi contínua da Bíblia judaica e a outra que corresponde à lição dos evangelhos.

No resto do ano as leituras dos Salmos e das escrituras judaicas estão relacionadas à lição do evangelho e estas às estações do ano litúrgico.

Leituras adicionais são oferecidas em dias especiais e de festas.


Como se dividem os anos em A, B e C?

Esta é uma maneira de cobrir toda a escritura em período de três anos, que se repetem sucessivamente, permitindo que textos pertencentes a diferentes divisões da Bíblia interajam e que dialoguem entre si.

A leitura dos evangelhos para cada ano vêm de um dos evangelhos sinóticos de acordo com o seguinte padrão:

Ano A - Mateus

Ano B - Marcos

Ano C - Lucas


Leituras do Evangelho de João podem ser encontradas em todos os anos no LCR.

Como eu sei em que ano estou?Os anos do lecionario vão do primeiro domingo de Advento de um ano até o domingo que o antecede no ano seguinte, assim, por exemplo, o ano A, começa em Novembro de 2004 e vai até Novembro de 2005, e assim sucessivamente.

Os anos listados abaixo são os seguintes:

Ano A - 2004, 2007, 2010, 2013, 2016

Ano B - 2005, 2008, 2011, 2014, 2017

Ano C - 2006, 2009, 2012, 2015, 2018


Como usar o lecionário na celebração cristã?

O eixo central sobre o qual se move o Lecionário Comum Revisado é a Páscoa. A festa maior do cristianismo é a festa da ressurreição. Ela é celebrada a cada domingo. As leituras bíblicas indicadas para cada dia festivo são três. Dessas, o evangelho é a leitura-mor, a que fornece o tema do dia. No Lecionário Comum Revisado, a leitura do Antigo Testamento apresenta duas possibilidades:

a) uma leitura bíblica que ilumina ou contesta o tema do dia;

b) uma leitura semi contínua do AT. A terceira leitura é a da epístola.


São denominados epístola os textos bíblicos do NT com exceção dos evangelhos. A epístola é leitura semi contínua, de modo que nem sempre se harmoniza com o tema do dia.


Outro fundamento do lecionário é que ele é pensado para ser lido por uma pessoa e ouvido pela comunidade. A comunidade acolhe a leitura e deixa o eco da leitura soar dentro de si, permitindo que o Espírito Santo sopre nos diferentes espaços de seu ser. A reflexão que é feita a seguir seria o que é denominado de homilia, isto é, uma conversa informal que integra o assunto de todas as leituras feitas, com destaque para o evangelho.


Como funciona o lecionario diário?

O lecionário diário pode ser usado para a meditação pessoal, em leituras em família, para grupos pequenos que se reúnem diariamente, para celebrações diárias onde estas sejam comuns.

O lecionário diário permite que se conte o tempo da semana de maneira distinta, colocando o Domingo como o centro da semana e da vida do cristão. Dessa forma a semana litúrgica começa toda quinta-feira, com a preparação para o domingo, os textos do Velho e do Novo testamento mudam a cada dia, porém o Salmo é relido a cada dia até o Domingo.

De segunda-feira em diante reflete-se sobre o que foi lido e falado quando a comunidade esteve junta no Domingo e assim se busca evitar perder o sentido daquilo que foi visto em comum, e se aprofunda a meditação e leitura até a quarta-feira seguinte.


O que significa a palavra Próprio no lecionário?

No lecionario, durante o tempo comum - seja o que vem após a epifania, seja o que vem depois do pentecostes - as leituras pertencem a divisões chamadas Próprios.

O termo é usado em contraste a ordinário, que são as partes da liturgia que são razoavelmente estáveis.

Se refere à leitura apropriada para aquela semana, naquele ano. A palavra vem do latim proprìus(a,um) e quer dizer aquilo 'que permanece, permanente, durável, estável, firme; que é propriedade de, que pertence como próprio, particular, especial, tudo que nos pertence como próprio; salutar, bom, eficaz'. Sendo assim aquilo que se considera saudável, bom e eficaz para aquela época.
Postado por Claudio Oliver

domingo, 24 de fevereiro de 2008

A LITURGIA NA TRADIÇÃO CRISTÃ


José Raimundo de Melo, S.J.


Como se deu a Inculturação da Liturgia ao longo dos séculos e em contato com os povos com os quais a Igreja se relacionou? Na página anterior, tratamos de como se formou na Igreja das origens os vários elementos que compõem a liturgia cristã. E vimos que a quase totalidade do seu complexo litúrgico proveio seja do culto dos judeus, seja da cultura e, um pouco mais tarde – quando não havia mais perigo de queda de cristãos na idolatria – também do culto dos pagãos. E isso bem indica que a Igreja já nas suas origens realiza uma verdadeira e própria inculturação. Ora, a partir de então e ao longo de toda a sua história a Igreja nada mais fez que ir se encarnando na existência das gentes com as quais se relacionou. Mas, como mesmo se deu tal processo? Vejamos a seguir alguns exemplos.


A Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, escrita por volta de 220, nos oferece um exemplo de inculturação quando descreve o rito de Iniciação Cristã do que entra a fazer parte da Igreja. Este recebe no momento da comunhão, além das espécies eucarísticas, leite e mel para significar “a realização da promessa feita aos patriarcas, de que lhes daria uma terra em que corre leite e mel”. O neófito, atravessando o rio Jordão por meio do batismo, entra na terra prometida e passa a gozar de seus frutos. Mas tal costume de dar leite e mel ao recém nascido já era usado pelos romanos antes do cristianismo para indicar que a criança era bem-vinda na família e como proteção contra os espíritos malígnos. Temos aí um importante testemunho de inculturação nesta época.


Muitas outras inculturações vão aparecer a partir do Edito de Milão de 313, pelo qual Constantino deu paz à Igreja. É o caso da eucaristia, até então celebrada nas casas particulares dos cristãos ou domus Ecclesiae, que passa sobretudo às Basílicas, os edifícios públicos do império romano cedidos agora às novas necessidades de grandes espaços por parte da Igreja. Também os cerimoniais pontificais e as vestes litúrgicas passaram a ser uma adaptação daqueles utilizados na corte imperial. Mas não tardará a aparecer no Sacramentário Veronense, na oração de ordenação de bispos, presbíteros e diáconos, termos como grau, honra e dignidade, próprios do ambiente imperial romano. E ainda vemos a utilização pelos cristãos, mas só por algum tempo, do “refrigerium” dos pagãos, que consistia numa refeição realizada junto do túmulo, na qual uma quantidade de comida e bebida era reservada para o morto.


A Igreja desses primeiros séculos realiza a sua inculturação aos costumes dos povos seja pelo método da “assimilação” ou da “reinterpretação”, seja pelo da “substituição”. Pela “assimilação” ou “re-interpretação” ela simplesmente tomava práticas próprias dos pagãos nas quais podia inserir um significado cristão e as adotava na sua liturgia. Exemplos: o uso de orações do tipo das atuais ladainhas, provenientes do costume romano de invocar a divindade com muitas intercessões; o beijo do altar e de imagens sacras, derivadas de gestos de reverência pagãos; a utilização da veste branca e da vela batismal pelos recémbatizados, que deriva do uso desses símbolos pelos neófitos das religiões mistéricas; o costume de orar voltado para o Oriente, influenciado pelas religiões solares mediterrâneas.


Já pelo método da “substituição”, os cristãos faziam coincidir a data de certas práticas do culto pagão, sobretudo festas, com festividades cristãs, até que a comemoração cristã aí inserida acabava por abolir a pagã. Grande exemplo desta tática foi a substituição da festa do deussol invencível, celebrada pelos romanos em 25 de dezembro, pela festa do Natal do Senhor, posta pelos cristãos nesta mesma data. Também a festa da Cátedra de São Pedro, 22 de fevereiro, tomou o lugar de uma comemoração dos antepassados romanos, representados pela sua cadeira e a festa da Purificação de N. Senhora ou das Candeias substituiu as Lupercálias romanas, nas quais muitos giravam despidos e com tochas nas mãos numa corrida noturna que acabava em grandes excessos. Mas um precioso exemplo de respeito e abertura diante dos costumes litúrgicos dos outros povos nos é referido numa carta endereçada pelo papa Gregório Magno (590-604) a Agostinho de Cantuária († cerca 605), evangelizador da Inglaterra, como resposta a uma outra em que Agostinho se lamenta ao papa pela independência demonstrada pelos bispos da Gália, que não observam uniformidade com a Igreja de Roma quanto à celebração da missa. Na sua resposta o papa mostra bem que fidelidade às tradições litúrgicas não se confunde com fidelidade ao rito romano. Ele, na verdade, não só não censura as diferentes práticas encontradas e relatadas por Agostinho, como ainda convida aquele evangelizador a assumir seja de Roma, seja da Gália ou de outra Igreja qualquer, os usos e costumes que considerar dignos de enriquecer ainda mais a liturgia da recém criada Igreja inglesa, posta sob a sua direção.


A partir do séc. VIII dá-se a migração da liturgia romana para as terras franco-germânicas. Chegando lá esta liturgia prática, austera e breve dos romanos vai receber forte influxo daqueles povos, tornando-se uma liturgia dilatada e cheia de muitos simbolismos, bem ao gosto dos franceses e alemães de então. Voltando a Roma tempos mais tarde, tal liturgia ostentará um grande número de bênçãos, exorcismos, exposições, seqüências e, junto a isso, o declínio da participação ativa do povo, o hábito das missas privadas, devoções aos santos, orações pessoais, confissões durante a missa etc. A partir do séc. XIV e até o período do Barroco vai ainda marcar a liturgia o aparecimento em muitos países da Europa do drama litúrgico que, em meio à grande ignorância da liturgia, garante de qualquer modo uma certa catequese ao povo. Estas cenas, recitadas na igreja e até durante a Missa, interpretavam eventos comemorativos das festas litúrgicas, da Missa, do Ofício Divino etc. Mas quando cenas indecorosas começaram a aparecer, muitas dramatizações foram retiradas das igrejas e levadas para a praça pública. Algumas dessas cenas litúrgicas, através dos missionários espanhóis, alcançaram até mesmo a América Latina, onde sobrevivem ainda hoje.


Os séculos XVII e XVIII ofereceram também novidades a nível de desejo de uma maior participação do povo no culto. Foi o caso do Jansenismo, que apresentou uma certa retomada do conceito de embléia e, entre outras coisas, lutou pelo uso da língua vernácula na liturgia. Identificado, porém, como um movimento atrás do qual se escondia a reforma protestante, foi desprezado e bem cedo condenado. Já o chamado Iluminismo católico, que teve a sua mais alta expressão no Sínodo de Pistoia (1786), lutou pela simplicidade e inteligibilidade dos ritos e dos textos e pelo valor da comunidade dos fiéis. Todavia, eivado de um exagerado racionalismo e de erros doutrinais, não só foi condenado, como também atrasou, por mais de um século e meio, o necessário processo de reformas, que enfim chegam com o Vaticano II. Não podemos, porém, deixar de recordar, mesmo que só de passagem, a importante tentativa de inculturação por parte de jesuítas na China do século XVII. Estes missionários usaram palavras chinesas para exprimir conceitos cristãos e aproveitaram do culto que o povo prestava a seus antepassados para incluir aí a adoração ao verdadeiro Deus. Os jesuítas, porém, cedo são denunciados como promotores de atos de idolatria, iniciando-se uma longa controvérsia que dura mais de cem anos (começa, com efeito, em 1610, logo após a morte de Matteo Ricci e se conclui apenas em 1742, com a publicação da Bula papal Ex quo singulari) e teve como desfecho a proibição dos jesuítas esenvolverem suas atividades missionárias na China. Acima tivemos alguns exemplos de como se realizou ao longo da história a inculturação da liturgia aos costumes dos povos. Um tal processo, pois, não é novo na Igreja; ele tem mesmo a idade da Igreja! Que estes poucos testemunhos concorram para nos ensinar a inculturar com abertura, coragem e fidelidade, a liturgia aos costumes dos nossos povos e ao modo de ser próprio das pessoas do nosso tempo.


JOSÉ RAIMUNDO DE MELO, é padre jesuíta, baiano, Doutor em Liturgia pelo Instituto Santo Anselmo, de Roma.

Na Igreja das Origens


José Raimundo de Melo, S.J.


Como a Igreja, também a liturgia tem uma sua história, que se foi formando e se desenvolvendo no decurso dos séculos cristãos. Trata-se de uma longa história, toda ela marcada por encarnações, adaptações, criatividades e inculturações, pois o cristianismo não nasceu já adaptado e assimilado aos diversos povos, mas teve necessidade de ir se encarnando nas várias culturas com as quais entrou em contato.


Desta forma, a Igreja, que vai surgir como um pequeno grupo em meio ao ambiente judaico, de início esteve profundamente marcada pelos modos e costumes próprios do judaísmo. E quando começa a se espalhar pelo mundo, por vezes sente necessidade de renunciar a alguns elementos judaizantes e, outras vezes, obedece ao imperativo de se adaptar aos costumes dos povos com quem se relacionou. Mas além de se adaptar aos povos, ela também teve que se adaptar às várias épocas culturais, aos vários séculos na evolução desses povos. Por ser a liturgia um dos aspectos mais exteriores e representativos da Igreja, capaz de apresentála como estandarte aos de fora (cf. SC 2), será ela a primeira a ter que realizar essa encarnação e adaptação na vida das gentes e nas várias épocas culturais.


A liturgia cristã que foi se estruturando na origem da Igreja e que conheceu inúmeras vicissitudes no decorrer dos anos, que a partir do Concílio de Trento e ao longo de quatro séculos se tornou rígida e intocável e que atualmente sente dificuldades de se encarnar nas culturas, sobretudo naquelas emergentes, como mesmo esta liturgia se formou e se organizou na Igreja? Responder a esta questão significa, de certa forma, ir colocando as bases de reflexão para um possível processo de inculturação da liturgia no hoje.


As práticas litúrgicas da Igreja das origens, como a celebração da eucaristia e os ritos sacramentais, a oração em comum e a pregação, estão ligados ao exemplo ou à recomendação de Jesus. Tais práticas, porém, não foram criadas por ele do nada, mas Jesus as tomou do culto hebraico de sua época. A Igreja apostólica segue nesta linha, e para as fórmulas não realizadas por Jesus, busca inspiração no culto dos hebreus. Já nas comunidades cristãs oriundas do paganismo, pouco a pouco vão entrar elementos provenientes inicialmente da cultura e mais tarde também da religião helênica e romana. É possível identificar a origem de muitas desses práticas. Vejamos a seguir que elementos na liturgia da Igreja provém do judaísmo, que outros provém do helenismo e o que nela é novo e original.


É de origem judaica, procedente do culto matutino da sinagoga, a Liturgia da Palavra composta por leituras, homilia e canto de salmos. Também a grande oração de Intercessão (ou Oração Universal) que precede a liturgia Eucarística, e que vem da oração judaica «dos 18 pedidos». O ciclo da semana de seis dias e a festa semanal, transferida logo cedo do sábado para o domingo. A festa de Páscoa e Pentecostes e ainda a idéia de santificação do curso anual do tempo e das estações com um série de festividades religiosas: o Ano Litúrgico. A oração da manhã e da tarde (depois chamadas de Laudes e Vésperas), as horas diurnas (Terça, Sexta e Nona), as orações noturnas e ainda a contagem do dia litúrgico de uma tarde a outra ou de véspera a véspera. Ainda o uso de salmos de louvor na oração da manhã e as exortações que antecedem algumas orações, como “Corações ao alto”, “Oremos”, “Demos graças ao Senhor nosso Deus”; as doxologias e o uso litúrgico do “Santo, santo, santo”, que é tirado de Is 6,3; aclamações litúrgicas como Amém, Aleluia, Hosana, E com o teu espírito. A oração paradigmática, que implora ajuda e salvação apelando aos grandes modelos (paradigmas) da História da Salvação. O importante gesto da imposição das mãos. E ainda as lavagens, as imersões e emersões, os “batismos”, que eram conhecidos tanto pelo AT, como pela comunidade de Qumrã. João Batista os utilizou, Jesus mesmo se deixou batizar e os cristãos o assumem "no nome do Senhor Jesus", para participar de sua morte e ressurreição.


De origem helênica, em especial das religiões mistéricas, proveio a idéia que levou ao estabelecimento do rito da Iniciação Cristã com seus exorcismos, unções, celebração na noite pascal e, com isso, o uso das vigílias. Também a disciplina do arcano (isto é, não revelar aos de fora da Igreja o conjunto dos seus ritos e fórmulas sagradas). O submeter as fórmulas de oração às leis retóricas da simetria e conclusão rítmica do período. Expressões litúrgicas do tipo: eucaristia, eulogia, hino, vigília, anamnese, epiclese, mistério, prefácio, cânon, exorcismo, advento, ágape, epifania, doxologia, aclamação, e a própria palavra liturgia.


Outras expressões como: Deo gratias, Kyrie eleison, Dignum et iustum est; e aquelas que reclamam a eternidade: em eterno, de eternidade em eternidade etc. Orações do tipo da ladainha e, de acordo com o exemplo judaico de rezar voltado para o templo de Jerusalém, o uso de rezar em direção ao Oriente e a conseqüente orientação das igrejas naquela direção.


Mas a Igreja apostólica, também cria formas novas de expressão: o batismo “no nome de Jesus”; a fração do Pão ou Ceia do Senhor, o memorial de sua morte; a imposição das mãos, mas com o sentido de conferir o Espírito, junto ao poder de presidir a comunidade eclesial; a unção dos enfermos.


Em resumo, na formação das primitivas expressões litúrgicas cristãs serviram como modelo, tipo e ponto de partida formas religiosas, rituais e culturais encontradas tanto no judaísmo, como no helenismo. Mas encontramos também formas novas, próprias dos cristãos. Por outro lado, algumas práticas do Antigo Testamento são abolidas, como o templo e os sacrifícios, o sábado, a circuncisão e muitas cerimônias. Assim pode-se dizer que a novidade do culto cristão não está na forma, mas no conteúdo. Muitas vezes conservando formas já existentes, os cristãos vão reinterpretálas, dando-lhes um novo sentido. Este conteúdo, este significado diferente, encerra a novidade cristã. Jesus e cristãos tomando elementos do rito judaico e colocando-os para a comunidade cristã de “forma nova”, realizam uma verdadeira inculturação.


Ora, assim como a liturgia cristã se formou a partir de contribuições provenientes de tantas regiões, povos e épocas diversas e não passa pela cabeça de nenhum de nós a idéia de que os primeiros cristãos, acolhendo elementos já existentes ou realizando a adaptação do rito à cultura, foram infiéis ou irresponsáveis frente à Igreja que lhes foi confiada pelo Senhor, da mesma forma os cristão hoje, edificados por tão belos exemplos, podem a justo modo, após examinarem diligentemente e com prudência as várias situações e respeitando a “substancial unidade do rito romano” (cf. SC 38), proceder a uma profunda e frutuosa adaptação do rito às culturas e índole dos vários povos. E isso se faz tanto mais exigente quanto sabemos ser verdadeiro direito de toda Igreja local exprimir o culto cristão mediante formas culturais próprias. A liturgia é sempre ligada à expressão de uma Igreja local. Cada forma litúrgica é ligada a uma certa cultura, a um contexto cultural, e dentro deste contexto deve se exprimir. O desenvolvimento da forma litúrgica tem um valor relativo porque este desenvolvimento é contingente. Não se pode valorizar como imutável, definitivo, o que é simples resultante de um desenvolvimento.


Como “a liturgia consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de partes susceptíveis de mudança” (SC 21), trata-se de determinar aquilo que no rito romano constitui sua unidade substancial (e, portanto, não pode ser mudado) e aquilo que, por natureza, é passível de modificações, para atuarmos o necessário processo da inculturação litúrgica. Procedendo assim estaremos simplesmente sendo fiéis não só à inteira história da Igreja como, em especial, às exigências de inculturação já previstas pela reforma litúrgica do Vaticano II e resumidas nos artigos 37-40 da Constituição Sacrosanctum Concilium.


JOSÉ RAIMUNDO DE MELO, é padre jesuíta, baiano, Doutor em Liturgia pelo Instituto Santo Anselmo, de Roma

O TERMO LITURGIA


O Termo Liturgia

José Raimundo de Melo, S.J


O termo «liturgia», hoje utilizado quase que exclusivamente para descrever o ato de culto, não nasceu em ambiente religioso e nem mesmo é oriundo do mundo do Antigo Testamento, mas vai aparecer por primeiro na Grécia antiga, pertencendo pois à língua grega clássica, como palavra composta por duas raízes: leit (de laós = povo) e érgon (= ação, empresa, obra). A palavra assim composta significava naquele ambiente em que nasceu: “ação, obra, empresa para o povo ou pública”. Por «Liturgia» se entendia um serviço público feito para o povo por alguém de posses. Este realizava tal serviço ou de forma livre ou porque se sentia como que obrigado a fazê-lo, por ocupar elevada posição social e econômica. Neste sentido eram «Liturgias» a promoção de festas populares, dos jogos olímpicos ou o custeio de um destacamento militar ou de uma nave de guerra em momentos de conflitos.


Na época helênica a palavra conhece uma evolução no seu sentido e começa a designar seja um trabalho obrigatório realizado por um determinado grupo, como castigo por alguma desobediência ou como reconhecimento por honras recebidas, seja o serviço do servo para com seu senhor ou o favorzinho de um amigo para com o outro. E aqui vemos o termo perder aquele caráter de serviço público, para a coletividade, que é, como vimos, um seu componente essencial.
Todavia, nesta mesma época helênica, começamos a ver o termo «Liturgia» sendo usado ao mesmo tempo e cada vez mais em sentido religioso-cultual, para indicar o serviço que algumas pessoas previamente escolhidas prestavam aos deuses. E é precisamente neste sentido que ele vai entrar no Antigo Testamento e, tempos mais tarde, será acolhido no mundo cristão.


De fato, no texto da Bíblia traduzida para o grego e chamada tradução dos LXX, «Liturgia» aparece cerca de 170 vezes, designando sempre o culto prestado a Javé, não por qualquer pessoa, mas apenas pelos Sacerdotes e pelos Levitas no Templo. Já quando os textos se referem ao culto prestado a Javé pelo povo, a palavra utilizada pelos LXX não é jamais «Liturgia», mas latría ou doulía. Isso por si só já nos indica que os tradutores dos LXX fizeram uma escolha consciente deste termo «Liturgia», dando-lhe um sentido técnico preciso para indicar de forma absoluta o culto oficial hebraico devido a Javé e realizado por uma categoria toda particular de pessoas especialmente destinadas a isso.


No Novo Testamento o termo vai aparecer apenas 15 vezes, mas uma só vez em sentido de culto ritual cristão (cf. At 13,2). E a razão de um tal desprezo dele pelo NT parece dever-se exatamente ao fato de «Liturgia» recordar de maneira muito clara e direta os sacrifícios realizados no Templo e que foram tantas vezes e de tantos modos duramente criticados pelos profetas de Israel, por não serem verdadeira expressão de amor e agradecimento a Deus pelos benefícios recebidos ou sinal de conversão dos pecados. Nestes sacrifícios, em geral, não aparecia o coração do homem; e este tipo de culto Deus não pode aceitar (cf. Sl 39,7-9; 49,14.23; 50,18-19; 68,31-32; 140,2; Is 1,10-20; Jr 7,3-11; Os 6,6; 8,11-13; Am 5,21-25).


No cristianismo primitivo o termo também resiste a aparecer. Os cristãos da origem adotando o «espiritualismo cultual», isto é, aquele tipo de culto realizado em “espírito e verdade”, não mais ligado às instituições do sacerdócio ou do templo, seja o de Jerusalém ou de Garizim (Jo 4,19-26), não sentem a necessidade de utilizar uma palavra que havia servido para identificar explicitamente um culto oficial, feito segundo regras precisas, tal qual era o sacrifício hebraico, vazio de espírito e rico de exterioridade. Mas já na Igreja pós-apostólica, «Liturgia» vai perdendo parte de seu aspecto negativo e começa a distinguir os ritos do culto cristão, como se vê em documentos como a Didaché (+- 80-90) e na I Carta de Clemente Romano aos Coríntios (+- 96).
No Oriente grego, o termo esteve sempre em uso para designar a ação ritual, muito embora hoje em dia indique sobretudo a celebração da Eucaristia segundo um determinado rito, como por exemplo, a “Liturgia de São João Crisóstomo”, a “Liturgia de São Tiago” etc. No Ocidente latino, porém, o termo «Liturgia» será completamente ignorado e só vai aparecer no séc. XVI, por causa dos contatos criados entre o Renascimento e as antigas fontes gregas. Mas devemos aguardar a primeira metade do séc. XIX para vê-lo utilizado no linguajar eclesiástico oficial latino com Gregório XVI, o que continua com Pio IX e sobretudo com Pio X. Por ocasião do Movimento Litúrgico do início deste século este termo será usado com grande força, sendo que o Concílio Vaticano II o consagrará nos seus diversos documentos, em especial na Constituição sobre a Liturgia Sacrosanctum Concilium, entendendo sempre por «Liturgia» “o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo” (SC 7), ou o “cume em direção ao qual se dirige toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte da qual sai toda a sua força” (SC 10).


JOSÉ RAIMUNDO DE MELO, é padre jesuíta, baiano, Doutor em Liturgia pelo Instituto Santo Anselmo, de Roma.