domingo, 24 de fevereiro de 2008

Na Igreja das Origens


José Raimundo de Melo, S.J.


Como a Igreja, também a liturgia tem uma sua história, que se foi formando e se desenvolvendo no decurso dos séculos cristãos. Trata-se de uma longa história, toda ela marcada por encarnações, adaptações, criatividades e inculturações, pois o cristianismo não nasceu já adaptado e assimilado aos diversos povos, mas teve necessidade de ir se encarnando nas várias culturas com as quais entrou em contato.


Desta forma, a Igreja, que vai surgir como um pequeno grupo em meio ao ambiente judaico, de início esteve profundamente marcada pelos modos e costumes próprios do judaísmo. E quando começa a se espalhar pelo mundo, por vezes sente necessidade de renunciar a alguns elementos judaizantes e, outras vezes, obedece ao imperativo de se adaptar aos costumes dos povos com quem se relacionou. Mas além de se adaptar aos povos, ela também teve que se adaptar às várias épocas culturais, aos vários séculos na evolução desses povos. Por ser a liturgia um dos aspectos mais exteriores e representativos da Igreja, capaz de apresentála como estandarte aos de fora (cf. SC 2), será ela a primeira a ter que realizar essa encarnação e adaptação na vida das gentes e nas várias épocas culturais.


A liturgia cristã que foi se estruturando na origem da Igreja e que conheceu inúmeras vicissitudes no decorrer dos anos, que a partir do Concílio de Trento e ao longo de quatro séculos se tornou rígida e intocável e que atualmente sente dificuldades de se encarnar nas culturas, sobretudo naquelas emergentes, como mesmo esta liturgia se formou e se organizou na Igreja? Responder a esta questão significa, de certa forma, ir colocando as bases de reflexão para um possível processo de inculturação da liturgia no hoje.


As práticas litúrgicas da Igreja das origens, como a celebração da eucaristia e os ritos sacramentais, a oração em comum e a pregação, estão ligados ao exemplo ou à recomendação de Jesus. Tais práticas, porém, não foram criadas por ele do nada, mas Jesus as tomou do culto hebraico de sua época. A Igreja apostólica segue nesta linha, e para as fórmulas não realizadas por Jesus, busca inspiração no culto dos hebreus. Já nas comunidades cristãs oriundas do paganismo, pouco a pouco vão entrar elementos provenientes inicialmente da cultura e mais tarde também da religião helênica e romana. É possível identificar a origem de muitas desses práticas. Vejamos a seguir que elementos na liturgia da Igreja provém do judaísmo, que outros provém do helenismo e o que nela é novo e original.


É de origem judaica, procedente do culto matutino da sinagoga, a Liturgia da Palavra composta por leituras, homilia e canto de salmos. Também a grande oração de Intercessão (ou Oração Universal) que precede a liturgia Eucarística, e que vem da oração judaica «dos 18 pedidos». O ciclo da semana de seis dias e a festa semanal, transferida logo cedo do sábado para o domingo. A festa de Páscoa e Pentecostes e ainda a idéia de santificação do curso anual do tempo e das estações com um série de festividades religiosas: o Ano Litúrgico. A oração da manhã e da tarde (depois chamadas de Laudes e Vésperas), as horas diurnas (Terça, Sexta e Nona), as orações noturnas e ainda a contagem do dia litúrgico de uma tarde a outra ou de véspera a véspera. Ainda o uso de salmos de louvor na oração da manhã e as exortações que antecedem algumas orações, como “Corações ao alto”, “Oremos”, “Demos graças ao Senhor nosso Deus”; as doxologias e o uso litúrgico do “Santo, santo, santo”, que é tirado de Is 6,3; aclamações litúrgicas como Amém, Aleluia, Hosana, E com o teu espírito. A oração paradigmática, que implora ajuda e salvação apelando aos grandes modelos (paradigmas) da História da Salvação. O importante gesto da imposição das mãos. E ainda as lavagens, as imersões e emersões, os “batismos”, que eram conhecidos tanto pelo AT, como pela comunidade de Qumrã. João Batista os utilizou, Jesus mesmo se deixou batizar e os cristãos o assumem "no nome do Senhor Jesus", para participar de sua morte e ressurreição.


De origem helênica, em especial das religiões mistéricas, proveio a idéia que levou ao estabelecimento do rito da Iniciação Cristã com seus exorcismos, unções, celebração na noite pascal e, com isso, o uso das vigílias. Também a disciplina do arcano (isto é, não revelar aos de fora da Igreja o conjunto dos seus ritos e fórmulas sagradas). O submeter as fórmulas de oração às leis retóricas da simetria e conclusão rítmica do período. Expressões litúrgicas do tipo: eucaristia, eulogia, hino, vigília, anamnese, epiclese, mistério, prefácio, cânon, exorcismo, advento, ágape, epifania, doxologia, aclamação, e a própria palavra liturgia.


Outras expressões como: Deo gratias, Kyrie eleison, Dignum et iustum est; e aquelas que reclamam a eternidade: em eterno, de eternidade em eternidade etc. Orações do tipo da ladainha e, de acordo com o exemplo judaico de rezar voltado para o templo de Jerusalém, o uso de rezar em direção ao Oriente e a conseqüente orientação das igrejas naquela direção.


Mas a Igreja apostólica, também cria formas novas de expressão: o batismo “no nome de Jesus”; a fração do Pão ou Ceia do Senhor, o memorial de sua morte; a imposição das mãos, mas com o sentido de conferir o Espírito, junto ao poder de presidir a comunidade eclesial; a unção dos enfermos.


Em resumo, na formação das primitivas expressões litúrgicas cristãs serviram como modelo, tipo e ponto de partida formas religiosas, rituais e culturais encontradas tanto no judaísmo, como no helenismo. Mas encontramos também formas novas, próprias dos cristãos. Por outro lado, algumas práticas do Antigo Testamento são abolidas, como o templo e os sacrifícios, o sábado, a circuncisão e muitas cerimônias. Assim pode-se dizer que a novidade do culto cristão não está na forma, mas no conteúdo. Muitas vezes conservando formas já existentes, os cristãos vão reinterpretálas, dando-lhes um novo sentido. Este conteúdo, este significado diferente, encerra a novidade cristã. Jesus e cristãos tomando elementos do rito judaico e colocando-os para a comunidade cristã de “forma nova”, realizam uma verdadeira inculturação.


Ora, assim como a liturgia cristã se formou a partir de contribuições provenientes de tantas regiões, povos e épocas diversas e não passa pela cabeça de nenhum de nós a idéia de que os primeiros cristãos, acolhendo elementos já existentes ou realizando a adaptação do rito à cultura, foram infiéis ou irresponsáveis frente à Igreja que lhes foi confiada pelo Senhor, da mesma forma os cristão hoje, edificados por tão belos exemplos, podem a justo modo, após examinarem diligentemente e com prudência as várias situações e respeitando a “substancial unidade do rito romano” (cf. SC 38), proceder a uma profunda e frutuosa adaptação do rito às culturas e índole dos vários povos. E isso se faz tanto mais exigente quanto sabemos ser verdadeiro direito de toda Igreja local exprimir o culto cristão mediante formas culturais próprias. A liturgia é sempre ligada à expressão de uma Igreja local. Cada forma litúrgica é ligada a uma certa cultura, a um contexto cultural, e dentro deste contexto deve se exprimir. O desenvolvimento da forma litúrgica tem um valor relativo porque este desenvolvimento é contingente. Não se pode valorizar como imutável, definitivo, o que é simples resultante de um desenvolvimento.


Como “a liturgia consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de partes susceptíveis de mudança” (SC 21), trata-se de determinar aquilo que no rito romano constitui sua unidade substancial (e, portanto, não pode ser mudado) e aquilo que, por natureza, é passível de modificações, para atuarmos o necessário processo da inculturação litúrgica. Procedendo assim estaremos simplesmente sendo fiéis não só à inteira história da Igreja como, em especial, às exigências de inculturação já previstas pela reforma litúrgica do Vaticano II e resumidas nos artigos 37-40 da Constituição Sacrosanctum Concilium.


JOSÉ RAIMUNDO DE MELO, é padre jesuíta, baiano, Doutor em Liturgia pelo Instituto Santo Anselmo, de Roma

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