domingo, 24 de fevereiro de 2008

A LITURGIA NA TRADIÇÃO CRISTÃ


José Raimundo de Melo, S.J.


Como se deu a Inculturação da Liturgia ao longo dos séculos e em contato com os povos com os quais a Igreja se relacionou? Na página anterior, tratamos de como se formou na Igreja das origens os vários elementos que compõem a liturgia cristã. E vimos que a quase totalidade do seu complexo litúrgico proveio seja do culto dos judeus, seja da cultura e, um pouco mais tarde – quando não havia mais perigo de queda de cristãos na idolatria – também do culto dos pagãos. E isso bem indica que a Igreja já nas suas origens realiza uma verdadeira e própria inculturação. Ora, a partir de então e ao longo de toda a sua história a Igreja nada mais fez que ir se encarnando na existência das gentes com as quais se relacionou. Mas, como mesmo se deu tal processo? Vejamos a seguir alguns exemplos.


A Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, escrita por volta de 220, nos oferece um exemplo de inculturação quando descreve o rito de Iniciação Cristã do que entra a fazer parte da Igreja. Este recebe no momento da comunhão, além das espécies eucarísticas, leite e mel para significar “a realização da promessa feita aos patriarcas, de que lhes daria uma terra em que corre leite e mel”. O neófito, atravessando o rio Jordão por meio do batismo, entra na terra prometida e passa a gozar de seus frutos. Mas tal costume de dar leite e mel ao recém nascido já era usado pelos romanos antes do cristianismo para indicar que a criança era bem-vinda na família e como proteção contra os espíritos malígnos. Temos aí um importante testemunho de inculturação nesta época.


Muitas outras inculturações vão aparecer a partir do Edito de Milão de 313, pelo qual Constantino deu paz à Igreja. É o caso da eucaristia, até então celebrada nas casas particulares dos cristãos ou domus Ecclesiae, que passa sobretudo às Basílicas, os edifícios públicos do império romano cedidos agora às novas necessidades de grandes espaços por parte da Igreja. Também os cerimoniais pontificais e as vestes litúrgicas passaram a ser uma adaptação daqueles utilizados na corte imperial. Mas não tardará a aparecer no Sacramentário Veronense, na oração de ordenação de bispos, presbíteros e diáconos, termos como grau, honra e dignidade, próprios do ambiente imperial romano. E ainda vemos a utilização pelos cristãos, mas só por algum tempo, do “refrigerium” dos pagãos, que consistia numa refeição realizada junto do túmulo, na qual uma quantidade de comida e bebida era reservada para o morto.


A Igreja desses primeiros séculos realiza a sua inculturação aos costumes dos povos seja pelo método da “assimilação” ou da “reinterpretação”, seja pelo da “substituição”. Pela “assimilação” ou “re-interpretação” ela simplesmente tomava práticas próprias dos pagãos nas quais podia inserir um significado cristão e as adotava na sua liturgia. Exemplos: o uso de orações do tipo das atuais ladainhas, provenientes do costume romano de invocar a divindade com muitas intercessões; o beijo do altar e de imagens sacras, derivadas de gestos de reverência pagãos; a utilização da veste branca e da vela batismal pelos recémbatizados, que deriva do uso desses símbolos pelos neófitos das religiões mistéricas; o costume de orar voltado para o Oriente, influenciado pelas religiões solares mediterrâneas.


Já pelo método da “substituição”, os cristãos faziam coincidir a data de certas práticas do culto pagão, sobretudo festas, com festividades cristãs, até que a comemoração cristã aí inserida acabava por abolir a pagã. Grande exemplo desta tática foi a substituição da festa do deussol invencível, celebrada pelos romanos em 25 de dezembro, pela festa do Natal do Senhor, posta pelos cristãos nesta mesma data. Também a festa da Cátedra de São Pedro, 22 de fevereiro, tomou o lugar de uma comemoração dos antepassados romanos, representados pela sua cadeira e a festa da Purificação de N. Senhora ou das Candeias substituiu as Lupercálias romanas, nas quais muitos giravam despidos e com tochas nas mãos numa corrida noturna que acabava em grandes excessos. Mas um precioso exemplo de respeito e abertura diante dos costumes litúrgicos dos outros povos nos é referido numa carta endereçada pelo papa Gregório Magno (590-604) a Agostinho de Cantuária († cerca 605), evangelizador da Inglaterra, como resposta a uma outra em que Agostinho se lamenta ao papa pela independência demonstrada pelos bispos da Gália, que não observam uniformidade com a Igreja de Roma quanto à celebração da missa. Na sua resposta o papa mostra bem que fidelidade às tradições litúrgicas não se confunde com fidelidade ao rito romano. Ele, na verdade, não só não censura as diferentes práticas encontradas e relatadas por Agostinho, como ainda convida aquele evangelizador a assumir seja de Roma, seja da Gália ou de outra Igreja qualquer, os usos e costumes que considerar dignos de enriquecer ainda mais a liturgia da recém criada Igreja inglesa, posta sob a sua direção.


A partir do séc. VIII dá-se a migração da liturgia romana para as terras franco-germânicas. Chegando lá esta liturgia prática, austera e breve dos romanos vai receber forte influxo daqueles povos, tornando-se uma liturgia dilatada e cheia de muitos simbolismos, bem ao gosto dos franceses e alemães de então. Voltando a Roma tempos mais tarde, tal liturgia ostentará um grande número de bênçãos, exorcismos, exposições, seqüências e, junto a isso, o declínio da participação ativa do povo, o hábito das missas privadas, devoções aos santos, orações pessoais, confissões durante a missa etc. A partir do séc. XIV e até o período do Barroco vai ainda marcar a liturgia o aparecimento em muitos países da Europa do drama litúrgico que, em meio à grande ignorância da liturgia, garante de qualquer modo uma certa catequese ao povo. Estas cenas, recitadas na igreja e até durante a Missa, interpretavam eventos comemorativos das festas litúrgicas, da Missa, do Ofício Divino etc. Mas quando cenas indecorosas começaram a aparecer, muitas dramatizações foram retiradas das igrejas e levadas para a praça pública. Algumas dessas cenas litúrgicas, através dos missionários espanhóis, alcançaram até mesmo a América Latina, onde sobrevivem ainda hoje.


Os séculos XVII e XVIII ofereceram também novidades a nível de desejo de uma maior participação do povo no culto. Foi o caso do Jansenismo, que apresentou uma certa retomada do conceito de embléia e, entre outras coisas, lutou pelo uso da língua vernácula na liturgia. Identificado, porém, como um movimento atrás do qual se escondia a reforma protestante, foi desprezado e bem cedo condenado. Já o chamado Iluminismo católico, que teve a sua mais alta expressão no Sínodo de Pistoia (1786), lutou pela simplicidade e inteligibilidade dos ritos e dos textos e pelo valor da comunidade dos fiéis. Todavia, eivado de um exagerado racionalismo e de erros doutrinais, não só foi condenado, como também atrasou, por mais de um século e meio, o necessário processo de reformas, que enfim chegam com o Vaticano II. Não podemos, porém, deixar de recordar, mesmo que só de passagem, a importante tentativa de inculturação por parte de jesuítas na China do século XVII. Estes missionários usaram palavras chinesas para exprimir conceitos cristãos e aproveitaram do culto que o povo prestava a seus antepassados para incluir aí a adoração ao verdadeiro Deus. Os jesuítas, porém, cedo são denunciados como promotores de atos de idolatria, iniciando-se uma longa controvérsia que dura mais de cem anos (começa, com efeito, em 1610, logo após a morte de Matteo Ricci e se conclui apenas em 1742, com a publicação da Bula papal Ex quo singulari) e teve como desfecho a proibição dos jesuítas esenvolverem suas atividades missionárias na China. Acima tivemos alguns exemplos de como se realizou ao longo da história a inculturação da liturgia aos costumes dos povos. Um tal processo, pois, não é novo na Igreja; ele tem mesmo a idade da Igreja! Que estes poucos testemunhos concorram para nos ensinar a inculturar com abertura, coragem e fidelidade, a liturgia aos costumes dos nossos povos e ao modo de ser próprio das pessoas do nosso tempo.


JOSÉ RAIMUNDO DE MELO, é padre jesuíta, baiano, Doutor em Liturgia pelo Instituto Santo Anselmo, de Roma.

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